31 de Março de 2023
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Arremessar anão é indigno?

Na década de 90, no interior da França, o anão Manuel Wackenheim não conseguia emprego, devido a sua pequena estatura. Resolveu, então, inventar uma atividade para ganhar a vida. Vestia-se com capacete e roupas acolchoadas, com alças nas costas, e se colocava à disposição de frequentadores de bares e discotecas, para ser lançado por eles na direção de um colchão de ar.

A diversão, conhecida como "lançamento do anão", tornou-se logo muito popular na cidade. O prefeito do lugar resolveu proibir sua realização, alegando constituir distúrbio à ordem e à segurança e saúde públicas. Manuel recorreu a uma corte administrativa e esta anulou a proibição, por não vislumbrar naquela atividade ilicitude ou infração a qualquer disposição de ordem pública. Inconformado, o prefeito apelou para o Conselho de Estado francês, que acolheu o recurso, proibindo aquela prática sob o argumento de que seria atentatória à dignidade humana.

Manuel, pequeno no tamanho, mas insistente na defesa do que julgava ser seu direito de ganhar a vida como lhe fosse possível, não se conformou com a decisão do Conselho de Estado francês e apresentou uma reclamação ao Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, sustentando que a proibição do Conselho de Estado francês é que afrontava sua dignidade, ao impedi-lo de trabalhar. E mais: violava sua liberdade e privacidade, além de configurar discriminação contra o nanismo. O Comitê das Nações Unidas, entretanto, não lhe deu razão, entendendo que não houvera discriminação e que a proibição da atividade se baseara em critérios objetivos e razoáveis e não violava os direitos humanos.

O caso do anão arremessado envolve uma matéria relevante, polêmica e, que, provavelmente, jamais será resolvida satisfatoriamente pelo ser humano. Trata-se do conflito entre intervenção estatal no âmbito da vontade do indivíduo e sua liberdade de se autodeterminar. Até que ponto a liberdade de ação ou de escolha do indivíduo pode ser limitada pelo Estado, em favor da coletividade ou em nome de algum valor socialmente perseguido? É legítimo ao Estado impor limites à conduta individual sob a alegação de estar protegendo o indivíduo de si mesmo (no caso de Manuel, proteger sua dignidade, mesmo contra a sua vontade)?

No estudo clássico "Sobre a Liberdade", com argumentos ainda válidos e atuais, o filósofo John Stuart Mill considera que o único critério válido que justifica a interferência do Estado na liberdade de ação individual é impedir o dano a outrem. Nem mesmo o próprio bem do indivíduo, material ou moral, constitui justificativa suficiente para limitar sua liberdade, contra a sua vontade. "Para justificar a coação ou a penalidade - diz o filósofo -, faz-se mister que a conduta de que se quer desviá-lo, tenha em mira causar um dano a outrem."

Embora concorde em grande parte com as ideias de Stuart Mill, penso que há situações excepcionais que podem justificar a intervenção estatal na esfera de liberdade do indivíduo, até contra sua vontade, para proteger valores comunitários relevantes, que representem ganho civilizacional, ainda que a conduta individual não implique em dano certo a terceiros.

Mas nesse específico, minha opinião é que agiram em desacerto o Conselho de Estado francês e o Comitê das Nações Unidas ao negarem a Manuel o direito de trabalhar da forma pretendida, principalmente porque a proibição se baseou tão somente em suposta proteção da dignidade humana, qualidade moral cujo conteúdo é por demais controverso e indeterminado. E o leitor, o que pensa a respeito desse caso?

José Benjamim
Advogado. Promotor de Justiça aposentado. Mestre em Direito. Aborda temas ligados ao Direito, com ênfase em questões de cidadania e da comunidade assisense.
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